Canadá, o país que não se lembra de seus artistas nem de sua música

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Há algum tempo, decidi mergulhar em busca de música pop canadense. Estava curioso para encontrar discos interessantes e obscuros. A discoteca da CHUO 89.1 FM de Ottawa (onde produzo e apresento o programa dominical Brazil Sound System) era tentadora. Mas num primeiro momento eu não esperava encontrar preciosidades. Imaginei que o Canadá preservasse bem sua memória cultural e, com a proximidade dos Estados Unidos, tudo de bom que fosse feito por aqui fosse bem manjado pelos DJs.

Mas eu estava bastante enganado. Comecei minhas andanças pelo YouTube em busca de funk canadense (o funk original, não o carioca!). E deparei com uma faixa de 1972 chamada “Get That Ball”, interpretada por uma cantora da qual nunca tinha ouvido falar na vida: Patsy Gallant. Bom, senta aí que lá vem pedrada… ou levante-se da cadeira para dançar:

O impacto de “Get That Ball” em mim foi enorme e me fez partir com apetite até as lojas de vinis usados por onde quer que eu passasse… Ottawa, Gatineau, Montreal, Toronto… e aí descobri coisas muito interessantes. Você conhecia algum desses artistas?

Todos eles são canadenses, e em algum momento de suas carreiras fizeram muito sucesso. Ganharam prêmios Juno e Félix, frequentaram as paradas americanas e europeias (em alguns casos chegando aos primeiros lugares), venderam muitos discos… mas em algum momento caíram na obscuridade. A ponto de mal serem lembrados pelas pessoas que estavam por aqui no seu tempo de maior sucesso comercial e ignorados pelos mais jovens.

Seria mais ou menos como se o Caetano Veloso fosse esquecido e ignorado a partir de um dado momento. Ou o Chico Buarque. Mas apesar dos percalços que fazem com que muitos artistas da melhor qualidade não recebam o devido reconhecimento, minha impressão é a de que o Brasil está muito adiante do Canadá na preservação de sua memória musical. Não se trata de gostar desses artistas e de suas obras. Mas de saber que existem e são importantes para a formação cultural do país. Você, obviamente, não tem obrigação de gostar do Roberto Carlos ou do Gilberto Gil. Mas certamente sabe que eles existem e conhece algo que eles fizeram. Suas obras provavelmente seguirão à disposição de quem deseje explorá-las pelo futuro.

O Canadá se destaca pela altíssima qualidade de sua produção musical – o número de artistas fazendo música de alta qualidade no país é impressionante, sobretudo se pensarmos que há somente 35 milhões de pessoas vivendo por aqui – mas também por não valorizar todos os que merecem. O país parece “eleger” os artistas que entrarão para a memória nacional. Rush, Céline Dion, Leonard Cohen, Neil Young, Joni Mitchell e Paul Anka são alguns deles. Em comum, o fato de terem “escorregado” fronteira abaixo para os Estados Unidos e desenvolvido suas carreiras a partir de lá em algum momento.

Por que então tantos grandes artistas canadenses caem na obscuridade? É uma resposta que eu venho tentando responder. É verdade. Me esqueci de dizer que sou Doutor em Música e retomei minha carreira acadêmica aqui… e que, quando me foi oferecida a possibilidade de um segundo doutorado, decidi pesquisar sobre a discografia de Patsy Gallant. Investigo coisas interessantes, como:

E todos os dias me pergunto como este país não se curva ao talento de uma artista com 60 anos de bons serviços no currículo e que foi uma importante pioneira em várias frentes. Foi, por exemplo, a primeira mulher a ser indicada para um prêmio de primeira linha na indústria fonográfica mundial na categoria “produção artística de discos”. O Juno Awards de 1977. Sete anos antes que a primeira mulher fosse indicada para a mesma categoria no Grammy Awards, por exemplo. Converso com várias pessoas, leio… e arriscaria dizer o seguinte no que diz respeito à falta do merecido reconhecimento (não é que esses artistas não tenham reconhecimento algum, ele simplesmente não é proporcional à grandeza e às realizações deles) para esses artistas:

  • A velha querela entre o Quebec e o resto do Canadá. Os artistas que nasceram, ou pelo menos conduziram suas carreiras a partir do Quebec são tratados na província como representantes do Quebec e não do Canadá. Por isso mesmo há uma impressão, ou um certo direcionamento, para o ROC (resto do Canadá) não se ver representado por eles. Mas tudo isso é muito complicado. Patsy Gallant, por exemplo, é tratada como uma artista quebecoise mas nasceu em New Brunswick e cresceu bilíngue. Sempre gravou nas duas línguas, muitas vezes misturando-as (é comum isso acontecer por aqui). Lançou vários discos pela gravadora Attic, sediada em Toronto. E entre 1978 e 1979 apresentou um show semanal para todo o país na CTV (uma das principais redes de TV canadenses). Causou polêmica no Quebec por gravar um dos hinos extra-oficiais da soberania quebeca (“Mon pays”, de Gilles Vigneault) em inglês e em ritmo de disco music – e a faixa estourou no mundo todo, e sempre se declarou a favor de um Canadá unido e bilíngue. Mesmo assim, o Quebec hoje se lembra dela apenas por duas ou três canções e o resto do Canadá praticamente a esqueceu. Porém justiça seja feita: é muito mais fácil encontrar discos de artistas anglófonos canadenses em Montreal do que discos de artistas franco-canadenses em francês em Toronto ou mesmo em Ottawa (que vergonha para a capital federal de um país oficialmente bilíngue). O interesse pelo francês e pela herança cultural franco-canadense fora do Quebec e das comunidades francófonas não parece ser significativo por aqui, e o país como um todo perde muito com isso;
  • O Canadá às vezes me dá a impressão de ser um país jovem dominado por jovens. Que discrimina pessoas de mais idade (eu mesmo já fui chamado de “velho” aos 43 anos por gente de 20 anos) e tende a rebelar-se contra “what Mom and Dad hold dear” à moda canadense: ignorando silenciosamente. Não sei dizer se a cultura deles, pela qual as crianças e adolescentes não passam tanto tempo com seus pais (e os avós muitas vezes estão isolados em retirement homes), depois vão embora para a universidade aos 18 anos e só retornam para visitar contribui para isso. Não parece haver tanto contato entre gerações diferentes como no Brasil;
  • Desde os anos 70, há leis que determinam um mínimo de conteúdo canadense (Can-Con, ou “Canadian content”) no rádio e na televisão. Mas quem escuta rádio hoje em dia com os Spotifys da vida? As plataformas de streaming dominaram por aqui, e não há qualquer filtro que determine um mínimo de conteúdo local a ser executado no país. Com isso, o que um jovem vai escutar? O que os outros disserem a ele que é bom;
  • Em alguns momentos, o canadense parece não ter muito orgulho de ser canadense. A preferência pelo conteúdo norte-americano, numa clássica expressão da ideia pela qual “o jardim do vizinho é mais verde”, pode ser flagrante. Bom, no Quebec isso é diferente;
  • A escola não ensina, ou não consegue ensinar, todos os valores nacionais de expressão aos alunos. Por exemplo, não há nenhuma disciplina de ” história da música popular canadense” nas universidades do país até onde eu saiba. Muitas vezes as aulas de “rock e música pop” são dadas com materiais produzidos nos Estados Unidos e só tratando de artistas norte-americanos.

Enfim… ao longo dessas minhas andanças tenho percebido que o Canadá precisa de alguma forma aprender a reconhecer sua memória cultural. Ela é muito importante para a formação de uma nação que estabelece vínculos sólidos com seus cidadãos e para o contínuo desenvolvimento de uma cultura com temperos locais, da qual as pessoas podem se orgulhar. Embora alguns dos melhores discos não estejam ainda nas plataformas de streaming, espero que estejam em breve. E desde já podemos, sem pagar nada a mais por isso, aproveitar o que o país nos dá de bom e saber o que vem sendo feito ao nosso redor. À medida em que nos tornamos canadenses, teremos a chance de participar e contribuir com tudo isso!